O passarinho da sua janela foi importante para você no passado


Eduardo Guimarães / Fotografias Eduardo Guimarães / Helga Wiederhecker
Ave da capa: canário-da-terra (Sicalis flaveola)

Olhar para o passado para entender o presente

Há alguns meses fui convidado a dar uma palestra na semana da biologia da Universidade Católica de Brasília (UCB). Quando perguntei o tópico para o aluno que entrou em contato, o tema me chamou atenção: A relação da espécie humana com as aves. Apesar de parecer simples, o tema é complexo. Me deixou realmente muito intrigado...Por onde começar? Neste texto vou discutir um pouco nossa relação com as aves. Parece que ao longo de nossa história esquecemos que fazemos parte de um mundo bem complexo e interligado.

Então, qual a nossa relação com outras espécies?

Vou abordar apenas uma dessas relações que permanece presente de forma bem clara até hoje: a domesticação. Andando aqui no meu bairro eu tento sempre escutar as aves que estão cantando. Quando escuto algum canto diferente vou atrás do som com objetivo de identificar a espécie. O surpreendente é que, quase sempre, acabo em frente a casa de algum estranho vasculhando sua garagem. Sim, a ave cantando está dentro de uma gaiola! Para alguns a criação em cativeiro é um horror, para outros é a única forma de realmente proteger a biodiversidade e um mercado promissor que pode direcionar dinheiro para a conservação. Como eu já fui criador de aves quando era jovem (e tenho vários amigos criadores amadores de aves), entendo a relevância dos dois pontos e ainda não tenho uma posição definida sobre o assunto. Além disso, existem muitas posições entre esses dois extremos, mas o tópico aqui é outro…


Coleirinho (Sporophila caerulescens)

Balança-rabo-de-máscara (Polioptila dumicola)

Aqui do Distrito Federal (de onde escrevo) são registrados no órgão ambiental 4.954 criadores amadores de aves. Se levarmos em conta o número da população atual daqui, que é de cerca de 3 milhões de pessoas, esse número parece baixo (0,16% de criadores). Andei por muitos lugares do Distrito Federal durante meu mestrado e, fazendo uma conta rápida do número de animais que observava em cativeiro, notei que esse número é realmente muito subestimado. Apesar de ser ilegal e gerar multas com valores altos, a maior parte dos criadores atuais de animais silvestres em cativeiro não é legalizado. Essa informação é relevante pois mostra algo importante: as pessoas gostam de criar animais em cativeiro. Então, de onde vem esse prazer na criação de animais?

Meu argumento é que isso é resquício de nossa história evolutiva. Como defendido pelo biólogo Edward O. Wilson, nossa história evolutiva se revela no presente, mesmo que não notemos. Quando você se senta em um parque aberto, por exemplo, com árvores espaçadas e um lago ao fundo, sente um prazer inexplicável. Sim, esse tipo de ambiente foi relevante na nossa história evolutiva e, provavelmente, pessoas que escolhiam esse tipo de ambiente sobreviveram e deixaram descendentes. Da mesma forma, a criação de animais (domesticação) foi relevante em nossa história e, provavelmente, garantiu nossa sobrevivência no passado. Populações humanas que domesticaram pela primeira vez a pomba-doméstica (Columba livia) possivelmente tiveram vantagens, pois esses animais forneciam alimento em momentos de escassez que garantiram a sobrevivência e propagação dessas pessoas. É difícil datar de forma exata, mas a pomba-doméstica aparenta ser a mais antiga ave domesticada pelos humanos (cerca de 9 mil anos atrás). De fato, após a domesticação inicial, essa prática se espalhou e se proliferou por todo o mundo. Hoje, as pombas-domésticas dominam o mundo. Afinal, quem domesticou quem?

Pomba-doméstica (Columba livia)

Após estudar o assunto mais a fundo eu tenho um maior respeito pelas pombas que me acordam de manhã cedo, no telhado do meu prédio. O respeito aumenta quando se olha mais para o passado e descobre que os ancestrais destes dinossauros sobreviveram à mega explosão de um asteroide, que extinguiu grande parte dos animais e marcou o fim de uma era geológica (Cretáceo). Sim, as aves são dinossauros que sobreviveram, se adaptaram e diversificaram amplamente, representando hoje mais de 10.000 espécies descritas em todo o mundo (o Brasil conta com mais de 1.900 dessas espécies de aves). A maior parte delas faziam parte do contexto quando os primeiros Homo sapiens surgiram.  Então, essa cultura de criação de cativeiro pode ser resquício de toda essa história evolutiva da nossa espécie. Entender essa perspectiva pode até melhorar a forma como atuar para combater as ilegalidades da prática, que é responsável pela retirada de espécies da natureza, morte de animais que são levados em condições precárias para fora do país (ou para regiões distantes do país).

A domesticação de animais e plantas foi uma grande revolução em nossa história (conhecida como revolução agrícola). O crescente fértil, berço da civilização moderna (cerca de 10 mil anos atrás), foi o local que mais propiciava a domesticação de plantas e animais (tanto em relação ao clima como em relação a espécies passíveis de domesticação) e todo o rumo da civilização posterior está diretamente ligado a essas domesticações que possibilitaram ter uma vida mais sedentária e aumentar a população. Como colocado por Jared Diamond, essas domesticações foram de extrema importância para definir os rumos da sociedade moderna, uma vez que as diferenças tecnológicas das populações humanas antigas definiram os rumos das colonizações modernas (com sobreposição das populações mais tecnologicamente avançadas sobre as menos avançadas). Quando leio essas informações fico fascinado com o fato de termos, em tão pouco tempo, perdido essa conexão e esquecido dessa história. Hoje temos carros e esquecemos de como os cavalos foram relevantes e definidores para o nosso avanço. Compramos leite em caixas no mercado e esquecemos que a domesticação de espécies leiteiras estão intimamente relacionadas à seleção de pessoas que produziam enzimas para degradar o leite (anteriormente restrita a crianças pequenas). Vários animais domesticados serviam de insumos alimentares (vacas, porcos, bodes, patos, galinhas, peru), mão de obra bruta (cavalos, lhamas), suas penas eram utilizadas em ornamentos (galinhas, patos) e cultos religiosos (patos, pombos, galinhas, papagaios).

Acesse a imagem interativa do crescente fértil

É difícil para alguém que cresceu nos últimos 100 anos entender a relevância desses animais que nos visitam na cidade. Quando, no texto anterior, proponho que as pessoas olhem para suas janelas e comecem a reparar nas aves, eu reforço o vínculo importante que temos com as outras espécies. Apesar de não sabermos direito o motivo, ao termos contato com os animais (cachorro, gato, a ave cantando na sua janela) nos sentimos melhores. Trabalhos recentes têm mostrado que ter a oportunidade de conviver com espécies de aves (mesmo em ambientes urbanos) nos traz bem-estar. Ao redor do mundo estudos estão sendo feitos com esses animais urbanos, ainda mais agora no contexto de pandemia que vivemos e que parou o mundo (uma oportunidade única de entender o impacto humano para a fauna selvagem). O mundo está começando a vacinar as pessoas e, logo mais, retomaremos a vida normal. Entretanto, uma coisa não podemos esquecer: não vivemos sozinhos no mundo. Precisou de um vírus com 120 nanômetros para nos mostrar isso.

Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus) / Helga Wiederhecker

Bem-te-vi (Pitangus sulphuratus) / Helga Wiederhecker

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